Por: Sérgio Rodrigues. A morte do escritor russo Alexander Soljenitsin, aos 89 anos, domingo, fez a imprensa lembrar em coro que o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1970, autor de “Arquipélago Gulag”, foi o maior adversário do extinto regime soviético no campo das letras, o mais famoso dos dissidentes. O que, acrescento eu, é ao mesmo tempo sua glória e sua danação. Morto o regime, e descontado o interesse histórico que seus livros possam gerar, por que alguém leria Soljenitsin? Eu nunca li, nunca senti falta. Está certo que tenho lacunas enormes na estante, mas também já li coisas tão datadas quanto A.J. Cronin e José Mauro de Vasconcelos. Parece que não estou sozinho. O “Moscow Times” diz que as novas gerações russas também não o lêem. Na sociedade ocidental de hoje, revelou-se a desigualdade entre a liberdade para as boas ações e a liberdade para as más ações. Um estadista que queira realizar algo importante e altamente construtivo para seu país precisa agir cautelosamente, até mesmo timidamente; existem milhares de críticos afoitos e irresponsáveis à sua volta, o parlamento e a imprensa o rechaçam. À medida que avança, ele é obrigado a provar que cada um de seus passos é consistente e absolutamente impecável. (…) Desse modo, a mediocridade triunfa sob a desculpa das restrições impostas pela democracia. A defesa dos direitos individuais chegou a tais extremos que tornou a sociedade como um todo indefesa diante de certos indivíduos. Chegou a hora, no Ocidente, de defender menos os direitos humanos e mais as humanas obrigações. O criminoso pode ficar impune ou ser tratado com leniência indevida, apoiado por milhares de defensores públicos. Quando um governo começa uma luta sincera contra o terrorismo, a opinião pública imediatamente o acusa de violar os direitos civis dos terroristas. Há muitos casos desse tipo. Como assim? Então a mais famosa vítima de uma ditadura defendia regimes de exceção? O discurso deu um nó na cabeça da intelectualidade ocidental, que quatro anos antes recebera Soljenitsin festivamente como um herói da liberdade, e contribuiu de modo decisivo para o duplo ostracismo em que ele mergulhou nos anos seguintes. Acabo de ler o tal discurso – aqui, em inglês. É, a meu ver, uma fieira de equívocos perigosos e atualíssimos. Mas não duvido que, ao dar nuances surpreendentes – e portanto mais humanas – a um personagem que o bipolarismo político do século 20 tentou tornar monocromático, acabe contribuindo para a sobrevivência literária de Soljenitsin. Eu, pelo menos, tive pela primeira vez vontade de ler o homem. Mas existe um lado menos, vamos dizer, programático, previsível e politicamente correto em Soljenitsin, um lado que o torna ao mesmo tempo mais intratável e mais interessante. O homem não era apenas um dissidente soviético. Era também um dissidente do Ocidente. Com aquela loucura bem russa, nacionalista e mística, não muito diferente da de Dostoiévski, proferiu em 1978 um famoso discurso na Universidade de Harvard em que enunciou, entre outras, as seguintes pérolas liberticidas, que devem ter feito Karl Rove roer de inveja os próprios dedinhos roliços: